Escravos de dia, tiranos à noite
Muitos de nós somos escravos de dia e tiranos à noite. Somos aqueles que pedem compreensão pelas nossas condições, mas também aqueles que usam o mesmo sistema para reproduzir tais condições.
Existe comida de baixo custo, voos de baixo custo e, atualmente, começaram a surgir também nas grandes cidades os entregadores de baixo custo. Talvez isso represente a máxima degradação daquele ditado que diz que quem tem vontade de trabalhar, acaba trabalhando.
Nós somos os médicos que utilizam o mesmo sistema de saúde que adoece os recursos, que compram de marcas produzidas em países nos quais as condições de trabalho são muito mais precárias que as nossas, etc.
Como sociedade, no fim das contas, somos nós que fazemos este ciclo girar… anestesiados pelo consumo do nosso recurso mais valioso, o tempo. Uma anestesia ao mesmo tempo necessária, porque de outra forma nós nos envenenaríamos com a nossa própria dissonância entre o que queremos ser e a nossa forma de agir.
“Somos escravos de dia, tiranos à noite. Nos queixamos das nossas condições, e premiamos os que as impõem”.
Sobrevivência, uma ilusão
Tempo para manter uma família que não vemos, dinheiro para pagar uma viagem que não aproveitamos, para comprar uma câmera com a qual não tiramos fotos. Tempo que escorre pelos dedos como gotas de água gelada. Gotas que, pouco a pouco, causam erosões em nossos ossos e formam rugas em nossa pele.
Somos escravos de dia porque trabalhamos sob condições precárias por um salário que nos permite a sobrevivência e um ou outro sonho que raramente se materializa.
Somos tiranos porque alimentamos este mesmo sistema, porque ligamos para um determinado restaurante para pedir comida, mesmo sabendo que o local não oferece boas condições aos seus empregados. Porque é mais barato, porque é mais rápido, porque nos dá a sensação de que contamos com mais tempo livre. A mesma ilusão que nos torna escravos de dia, nos torna tiranos à noite.
Aceitamos impostos por um salário muito baixo. Temos consciência de que se nós não fizermos, outros farão, inclusive por menos. Porque sempre há alguém mais necessitado que nós.
É esta insensibilidade que permite a sobrevivência presente e, ao mesmo tempo, que cala nossas vozes, que se perdem entre as horas e mais horas gastas olhando as vitrines, as telas de nossos smartphones ou dirigindo um carro… vendo como somos facilmente substituíveis.
Uma revolução pessoal frente ao buraco negro da inércia atual
Por isso, faz-se necessária uma revolução. Não importa se grande ou pequena, mas uma revolução que comece por nós… para que deixemos de ser escravos durante o dia e tiranos durante a noite. Denunciando as condições de trabalho precárias, renunciando à tentação de comprar mais barato, sabendo que a diferença de preço sempre é paga por quem está por final no ciclo.
Devemos nos afastar da crença de que oito horas de trabalho se igualam a três ou quatro horas, e que isso passa rápido. Alimentação rápida, exercício rápido, sono rápido… para que mais velocidade em um mundo que já é suficientemente rápido?
Para que menos exercício, para que receber tudo em casa, num mundo que só engorda a passos enormes? Para que tanta tecnologia se, no fim das contas, acabamos trabalhando mais horas? Para que tantas ofertas se nem com o carrinho cheio conseguimos sentir aquele alívio causado pelo raio de sol que vem depois de uma longa chuva?
Tudo rápido, tudo fast, não deixa de ser uma ilusão criada pelo próprio sistema para passar a imagem de que gozamos de tempo livre e de recursos suficientes. Mas será que é mesmo assim? Até mesmo aqueles que pensam receber um salário decente, continuam achando tudo justo quando deixam de lado as “facilidades” disponíveis?
Trabalhamos muitas horas, mas será que recebemos o equivalente em tempo real ou apenas no “tempo rápido”? O rápido, sem nenhum peso transcendental, acaba quando uma pessoa resolve expor a corrente; aí, então, enfrentamos cara a cara a tontura, enfrentamos a nós mesmos, nus, sem armadura nenhuma que impeça o contato com a verdade.
Nós nos olhamos no espelho e nos sentimos estranhos. Somos nós ali refletidos no espelho, mas ao mesmo tempo nos sentimos ausentes. Longe do nosso corpo, das pessoas que amamos, que estão presas nos escritórios encarando telas, falando sobre pessoas que não fazem diferença nenhuma em suas vidas, desperdiçando seu tempo.
Nós temos muitas razões para começar uma pequena revolução. Uma revolução que nos liberte da escravidão diurna e da tirania noturna.