Se a neurociência fosse poesia

O cérebro adora a poesia; tanto é assim, que está programado para reconhecê-la. Afinal de contas, esse gênero literário nos vem acompanhando ao longo de nossa evolução como humanidade. A neurociência sabe disse e por isso vem descobrindo dados incríveis há décadas.
Se a neurociência fosse poesia
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 13 fevereiro, 2023

Michio Kaku, o famoso físico estadunidense de origem japonês, costuma apontar que sobre nossos ombros está o objeto mais complexo que a natureza criou em todo o universo conhecido. De fato, o cérebro e seus mais de 69 bilhões de neurônios constituem a entidade mais fascinante e singular de nossa existência.

Agora, se a neurociência quer conhecer todos os seus mistérios, ela deve se tornar nada mais nada menos que um poeta. Essa metáfora sutil tem seu significado e também sua transcendência mágica. A poesia acompanhou a evolução da humanidade e está fortemente enraizada no desenvolvimento das emoções e cognições.

A cultura é um produto da mente do ser humano e ela o molda, o influencia de tal forma que penetra na sua consciência e forma novos correlatos neurais. Somos o que fazemos, o que lemos e também o que cada leitura inspira e desperta em nós, e claro, também cada verso.

“Para escapar da terra
um livro é o melhor recipiente;
e você viaja melhor no poema
que no mais espirituoso e veloz corcel

Até os mais pobres podem fazê-lo,
nada pois tem que pagar:
a alma no transporte do seu sonho
se alimenta apenas de silêncio e paz”.

-Emily Dickinson, Reverie-

Mulher com cérebro iluminado representando a metáfora de Lete e Mnemosyne
Na poesia, as palavras adquirem maior valor e têm um impacto mais significativo e estimulante em nosso cérebro.

Se a neurociência fosse poesia, entenderíamos melhor o cérebro

A poesia faz parte da história da humanidade e surgiu como uma necessidade básica de expressar estados interiores. Dessa forma, embora o registro escrito mais antigo que temos tenha 4.300 anos, sabemos que suas raízes podem ser mais antigas. Naqueles tempos em que a alfabetização ainda não era difundida, a poesia era transmitida oralmente.

Servia para narrar acontecimentos heróicos (poesia épica) e para mergulhar em sentimentos, como o amor ou o desejo (poesia lírica). A poesia tinha um caráter ritual e comunitário para os sumérios ou assírio-babilônicos, e houve povos que usaram a écloga para louvar divindades, paisagens ou a própria felicidade sentida. É fácil compreender a implicação que poderia ter tido em nível neurológico.

Se a neurociência fosse poesia, entenderíamos melhor que o cérebro é programado para reconhecê-la. Como aponta o psicólogo Guillaume Thierry, a poesia parece estar incorporada em nossos substratos mentais como uma intuição profunda. Na verdade, todo ser humano é um poeta inconsciente.

A poesia é uma aliada das emoções e da cognição

Boa parte de nós temos nossos versos preferidos. Se nos fizessem um eletroencefalograma enquanto lemos nossos poemas favoritos, descobriríamos a intensa ativação que esse ato produz em inúmeras áreas cerebrais. Foi exatamente isso que a Universidade de Exeter fez em uma investigação para descobrir que a poesia pode ser tão ou mais estimulante que a música.

Por exemplo, foi possível ver como estimulava a área direito do cérebro, como acontece com os estímulos musicais. No entanto, regiões da área esquerda, bem como os gânglios da base, o córtex pré-frontal e os lobos parietais também foram fortemente ativadas. São áreas relacionadas ao processamento profundo de informações, pensamento flexível e reconhecimento.

Os autores desse estudo enfatizam que a poesia não só faz aflorar nossas emoções, mas também nos permite tomar consciência de cada palavra, de cada metáfora. Isso desperta o pensamento indutivo e reflexivo, bem como a capacidade de ponderar os diferentes significados e perspectivas que nossa realidade pode ter.

Emily Dickinson e a neurociência

Se a neurociência fosse poesia, teria Emily Dickinson como referente. A famosa poetisa de Massachusetts não só faz parte desse panteão de figuras-chave da poesia americana, como foi para Edgar Allan Poe, Ralph Waldo Emerson e Walt Whitman. Ela é a personalidade favorita de muitos ganhadores do Prêmio Nobel que estudaram os mistérios do cérebro humano.

Biólogos, como Gerald Edelman, ou neurocientistas cognitivos, como Stanislas Dehaene, usaram um de seus poemas como introdução para suas publicações. Dickinson escreveu em 1862 que o cérebro é mais amplo do que o céu, mais profundo que o mar e que é apenas o peso de Deus. O que ela realmente fez foi descrever aquele produto do cérebro que é a mente e seu poder quando se trata de experimentar e criar a realidade.

Seu poema representa para os neurocientistas uma experiência do sublime e da capacidade do cérebro de construir percepções. O cérebro faz parte da natureza humana, mas a transcende graças aos seus pensamentos e imaginação, podendo ir além do céu, ser mais profundo do que o próprio oceano…

“O cérebro é mais amplo do que o céu;
colocá-los juntos
e um conterá o outro
com facilidade, e você também.

O cérebro é mais profundo que o mar;
contendo-os, azul com azul,
e uns aos outros irão absorver,
como uma esponja.

O cérebro é o único peso de Deus;
levante-os, libra por libra,
e eles serão diferentes, se o fizerem,
como a sílaba difere do som.

-Emily Dickinson, O Cérebro (1862)-

Sentir as palavras para despertar a consciência

A literatura enriquece as pessoas de maneira inegável. Fornece-nos conhecimento, desperta-nos novas perspectivas e configura-se muitas vezes como um exercício catártico de mudança e bem-estar. Porém, se a neurociência fosse poesia, entenderia que seu poder vai além da narrativa e desperta em nós a autoconsciência emocional em maior grau.

Os versos, as metáforas e todos os recursos poéticos fazem da palavra um gatilho psicológico. Permite-nos sentir, ver e compreender o mundo de uma forma mais rica e complexa. O uso de simbolismos aumenta a introspecção, o senso crítico e a mentalidade reflexiva. Além disso, nos estimula a nos conectarmos com nós mesmos e com o que nos rodeia em outro nível.

Estimula a imaginação, porque brincar com as palavras também nos convida a brincar com a realidade e a reinventá-la, a vê-la sob múltiplos prismas. A neurociência sabe que a poesia não apenas embeleza a linguagem, mas ativa um ponto atávico no cérebro para torná-lo mais rico e aumentar suas conexões sinápticas. Então não vamos hesitar, vamos navegar nesses mares de letras para nos sentirmos, se possível, muito mais vivos.


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  • Wilkes J, Scott SK. Poetry and Neuroscience: : An Interdisciplinary Conversation. Configurations. 2016 Summer;24(3):331-350. doi: 10.1353/con.2016.0021. PMID: 27885317; PMCID: PMC5082107.

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