Tubarão: outras formas de terror
Em inúmeras ocasiões aproveitamos para falar de filmes de terror ou, pelo menos, daquele tipo de cinema que desperta medo e adrenalina no espectador. Revendo clássicos do gênero, nos deparamos com um filme que nos impressionou na infância e continua causando um forte impacto até hoje: Tubarão (Steven Spielberg, 1975).
É notório o quão bem o filme envelheceu porque, apesar dos avanços tecnológicos e dos medos que mudam a cada geração, Tubarão consegue o seu propósito e continua apelando para um medo bastante racional em comparação com a infinidade de ameaças sobrenaturais que encontramos no cinema.
Com isso, não queremos dizer que o terror sobrenatural não atinja seu objetivo; simplesmente que sua complexidade é maior e, diante do crescente ceticismo, não há nada como uma catástrofe natural ou uma ameaça plausível.
O medo no cinema bebe precisamente dessa fonte, do plausível ou do provável. Desse medo que sentimos como nosso e com o qual podemos sentir empatia. Tubarão, embora tenha conotações fantásticas, nos aproxima daquele sentimento de angústia e perseguição… tão humano e tão animal ao mesmo tempo.
A herança de Hitchcock
Na época de Hitchcock, a tecnologia estava longe das possibilidades que oferece hoje. Assim, o cinema se viu obrigado a utilizar recursos narrativos que pudessem acentuar as sensações no espectador. Se pensarmos nos primeiros filmes de terror, aqueles dominados por monstros como Frankenstein, a maquiagem e a expressão do ator eram essenciais.
É claro que essas técnicas permanecem até hoje, mas se juntam a outros recursos que permitem que monstros ou sombras sejam geradas praticamente do nada. Os cineastas tiveram que inventar absolutamente tudo para gerar efeitos especiais. Tudo o que é difícil de mostrar na tela ou representa um risco para os intérpretes deve ser recriado artificialmente.
Assim, não iriam filmar com um tubarão branco real, mas com um modelo o mais realista possível. Certamente, se o filme fosse filmado hoje, o modelo em escala dificilmente seria necessário e as novas tecnologias recriariam um assassino do mar tão realista, embora talvez não tão assustador.
A coisa mais assustadora do filme de Spielberg acontece durante os primeiros 90 minutos do filme, pouco antes de ver a poderosa mandíbula do animal.
Spielberg queria tirar o máximo proveito de sua cara maquete, mas assim como Kubrick com os extraterrestres em 2001: Uma odisseia no espaço, limitações técnicas trabalharam contra ele.
Portanto, a equipe teve que se valer de outros recursos narrativos para gerar angústia no espectador. Um medo que inevitavelmente evoca Hitchcock, o grande mestre do suspense. Em outras palavras, eles tinham que apertar a tecla certa na hora certa.
Como conseguiram isso? Fazendo uso, justamente, do que não vemos, das margens que a própria câmera nos oferece e, nesse caso, das profundezas do mar, jogando com a imaginação do espectador.
A câmera observa os banhistas à distância, aproximando-se deles enquanto a música gera cada vez mais tensão. Finalmente, em algumas cenas, a câmera é submersa para não ser um espectador passivo, mas para se tornar os olhos do próprio tubarão perseguindo sua presa.
Há uma cena que, na minha opinião, definitivamente destaca a magia do fora de cena. Estou falando da cena em que o tubarão destrói o píer e um dos personagens cai na água, nesse momento, o animal arrasta os restos do píer e, de um momento para outro, vemos como fazem uma curva para o homem que está na água enquanto a música aumenta sua intensidade.
Dessa forma, sem ver o tubarão, o espectador fica perfeitamente ciente do que está acontecendo e da ameaça que isso representa para o personagem em questão.
Tubarão: a inépcia das autoridades
Para além do gênero, Tubarão usa a imagem narrativa para colocar diante de nossos olhos uma situação que, infelizmente, não é totalmente desconhecida. Vemos como a localidade insular de Amity, que vive exclusivamente do turismo, vê sua economia em perigo quando um tubarão assassino invade suas águas em plena temporada.
Apesar das advertências da polícia, o prefeito prefere ignorar e está mais preocupado com o impacto econômico na cidade do que com o bem-estar de seus habitantes. A figura do prefeito, de fato, é bastante ridícula e inútil, pois nada mais é do que um obstáculo à solução.
O prefeito pode ser visto como um grande vilão, um antagonista maior que o próprio animal. O tubarão, afinal, está tentando se alimentar e responde aos instintos de sobrevivência, enquanto o prefeito age de forma egoísta, ignorando o que pode ser um perigo real para os banhistas.
Da mesma forma, torna-se importante o personagem do marinheiro, que pode ser visto como uma representação da classe trabalhadora, aquela que não tem escolha a não ser enfrentar o perigo.
O filme tem sido suscetível a várias leituras, há quem veja reminiscências do escândalo de Watergate, quem critique a escassa – se não nula – presença de mulheres e homens não brancos e quem aponte para um filme que agrada a um grande público no clima de verão.
E isso, em parte, é verdade, podemos ver Tubarão como um sucesso de bilheteria de verão, como um filme que aponta para a unidade ou como a filmagem que termina com o clímax da morte do mesmo. Uma morte simbólica que, perfeitamente, poderíamos identificar com outras supostas ameaças reais e que pouco ou nada têm a ver com a natureza.
A morte do tubarão é um alívio para o espectador, disso não há dúvida; a ameaça acabou e podemos respirar tranquilos. Mas e os outros culpados?
A verdade é que o tubarão, afinal, por mais aterrorizante que seja, é apenas mais uma vítima. Um animal que se encontra em suas águas, em seu ambiente, enquanto os humanos, por puro egoísmo, querem invadi-lo. Quem, então, é a verdadeira ameaça? Quem é mais perigoso: o animal ou o homem que valoriza mais a economia do que a integridade das pessoas?
Um filme para todos
O desafio não era fácil, com uma premissa tão simples quanto a ameaça de um tubarão, é difícil pensar em um filme de duas horas que consiga prender a atenção do espectador. Durante grande parte do filme nos perguntamos como a ação vai continuar, como eles vão conseguir resolver o problema sem deixar a sonolência tomar conta de nós.
O filme supera esses obstáculos dividindo-se em duas metades claramente diferenciadas: uma primeira parte que gera tensão e terror diante da ameaça; e uma segunda parte que opta por nos mergulhar em um filme de aventura. Ou seja, do horror passamos à ação, ao cinema mais aventureiro em que tentarão encontrar uma solução.
Na primeira parte, não vemos o tubarão, como dissemos, a tensão e a incerteza permanecem. O terror passa pelo jogo com o fora de cena que, embora Spielberg tenha preferido não usar muito, agradecemos enormemente.
O fato de não ver o tubarão faz nossa mente brincar com suas dimensões, com o perigo que ele realmente carrega. Na segunda parte, por fim, vemos sua boca, aquela mandíbula temível que aparece no momento mais oportuno.
Ficamos tanto tempo sem conhecer a aparência do animal que não esperamos mais que seja revelada. E, no entanto, bem no meio, uma boca temível nos surpreende e assusta. Uma vez conhecida a aparência do animal, os personagens estarão envolvidos na luta para aniquilá-lo, para resolver o problema. Dessa forma, o cineasta garante que nossa atenção não seja desviada em nenhum momento.
É verdade que a intenção do filme é ser um sucesso comercial -sem dúvida foi-; no entanto, também é interessante notar como ele sobreviveu ao teste do tempo. Como sua música fica para sempre gravada em nossas mentes e como, toda vez que alguém menciona o filme, imaginamos uma barbatana na água enquanto cantarolamos a melodia estremecedora.
Um produto industrial, um sucesso que transcendeu seu verão e ainda alimenta os pesadelos de muitos.