Uma fábula sobre o amor

Uma fábula sobre o amor

Última atualização: 03 abril, 2015

Se começássemos a contar as músicas, os poemas, os livros, os filmes, as pinturas e todas as demais formas de expressão que já se referiram ao amor entre um casal, não terminaríamos nunca. O amor é um tema que parece ser interminável, pois sempre aparece uma nova forma de entendê-lo, de contá-lo. Desde as mais ingênuas manifestações do romantismo, até as problemáticas revelações do Marquês de Sade, ou de Anais Nin.

Atualmente, a ideia de amor mais aceita é a que ele é “uma tábua de salvação” na qual devemos nos apoiar. Ainda mais em tempos onde tudo se afunda e se renova constantemente. O amor entre um casal é o oásis prometido, mesmo que se torne um campo de batalha. É também a reafirmação do próprio eu, mesmo que suponha se perder um pouco no “eu” que tanto amamos… É, as vezes, a perfeita ocasião para deixar nosso cinismo e nosso sarcasmo para trás, frente a uma vida considerada feliz. O nosso niilismo, se acreditamos que não vale a pena crer.

O que há de tão enigmático num sentimento que há alguns séculos atrás não despertava a curiosidade de ninguém?

A fábula de Carlos Magno

Caso queira a minha opinião, o meu relato favorito sobre o amor foi feito por Ítalo Calvino, em forma de uma pequena fábula, referindo-se a um dos maiores guerreiros de todos os tempos. Diz assim:

“O imperador Carlos Magno se apaixonou, já idoso, de uma jovem alemã. Os nobres da corte estavam muito preocupados porque o soberano, possuído por um ardente amor e esquecido da dignidade real, estava descuidando dos assuntos do Império. Quando a jovem repentinamente morreu, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não havia morrido junto com ela. O imperador, que tinha mandado levar o cadáver embalsamado para seus aposentos, não queria se separar da jovem. O arcebispo Turpín, assustado com essa macabra paixão, suspeitou de um encantamento e quis examinar o cadáver. Escondido debaixo da língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. Mal colocara o anel em suas mãos, Marlos Magno se afastou do cadáver e se apaixonou pela pessoa do arcebispo Turpín. Para escapar dessa embaraçosa situação, Turpín jogou o anel no lago Constanza. Carlos Magno se apaixonou pelo lago Constanza e nunca mais quis se afastar de suas margens.”

É evidente que a intenção de Calvino era propor uma nova leitura ao amor. Nem sequer deu um nome à donzela sortuda que, inicialmente, foi objeto de incrível paixão. Diz apenas “Uma jovem alemã”.

Então se perde pelos labirintos do absurdo: um famosíssimo guerreiro que venera um cadáver e o embalsama. Esta fábula nos sugere que o amor não responde às exigências práticas da razão? Que ultrapassa os limites da sanidade e se comporta como a entrada invencível no mundo do irracional? Do inconsciente, talvez?

Finalmente, nos apresenta a maior revelação: o amor está incluído no mundo mágico. E tem mais a ver com nós mesmos e com nossos demônios internos, do que com o objeto para o qual dirigimos o sentimento do amor.

As coordenadas do amor

Caso você seja um romântico e um eterno nostálgico do amor, pode ser que você passe a se sentir incomodado. O amor é, sem dúvidas, um sofrimento. No entanto, é um “sofrimento bom”, do qual ninguém quer se desprender. Florentino Ariza, personagem do romance “O amor nos tempos do Cólera”, rejeitava duramente tudo que queria protegê-lo da brasa na qual, cada vez, queria ser mais consumido. O amor se move nessa lógica e, por isso, coloca em prova as bases de nossas vidas ao se apresentar como alguém, como quem não quer nada.

Se há algo de valioso nesse sentimento é que ele nos deixa à beira do abismo no qual, às vezes, parecemos cair. O amor nos permite olhar o vazio cara a cara e nos lembra que “Se Deus nos deu a vida apenas para tirá-la, o amor, ao contrário, nos foi dado para alcançarmos a plenitude.” (parafraseando um poema de Juan Manuel Roca).

Onde fica, então, a lenda tão lindamente escrita por Ítalo Calvino? Talvez ela esteja no grande paradoxo que nos habita. Na infinita solidão que cada um de nós leva como marca e na esperança de superá-la, com a qual seguimos em frente. Na verdade do nosso destino como indivíduos e na promessa nunca antes cumprida de ser um só, junto a outro ser humano. Talvez, na mesma sentença enigmática com a qual Pablo Picasso elucidou a razão de ser da arte: “Uma mentira que nos aproxima da realidade”.

 

Créditos da imagem: Joe Philipson – Através de seu Flickr


Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.