Psicopatologia e privação precoce: existe uma relação?

A relação entre privação em estágios iniciais de desenvolvimento e o surgimento de sintomas psicopatológicos foi objeto de estudo de uma pesquisa longitudinal realizada por profissionais da Universidade de Southampton. Neste artigo, vamos expor e refletir sobre os seus resultados interessantes.
Psicopatologia e privação precoce: existe uma relação?

Última atualização: 17 julho, 2021

Um dos grandes propósitos da psicologia no campo experimental é descobrir a origem da psicopatologia, isto é, dos distúrbios psicológicos. Parece uma meta sem fim, já que não são apenas os genes que determinam o aparecimento de um distúrbio. Hoje, falaremos sobre a possível relação entre psicopatologia e privação precoce.

 O ambiente tem um papel essencial no desenvolvimento do indivíduo. É a sua combinação, ou seja, o fenótipo, que explica o surgimento de um transtorno psicopatológico ou sua não expressão. Alguns aspectos relevantes do ambiente que podem influenciar o fenótipo são a educação, os hábitos familiares ou, conforme apresentado neste artigo, a privação precoce.

A privação se refere à precariedade, falta de cuidado, estímulo ou fome em idade precoce de desenvolvimento. Inúmeros artigos têm destacado a relação entre esses dois construtos, por meio de estudos longitudinais e investigando conceitos como resiliência.

Em uma dessas pesquisas, apresentada por Sonuga et al. em 2017, foi investigado o fenômeno da adoção em massa de crianças romenas por famílias britânicas durante a queda do ditador Nicolae Ceausescu.

Neste estudo longitudinal —avaliando crianças desde a adoção até jovens adultos— a privação precoce sofrida por crianças romenas em orfanatos superlotados foi definida como: falta de estimulação cognitiva e social, fome, falta de cuidados individuais e personalizados e muito pouca higiene.

O contexto romeno era desolador. O ditador tentou pagar a dívida que o país acumulava devido à sua rápida industrialização exportando toda a produção agrícola, dando origem a uma nação que, após uma guerra civil, passava fome. Por isso, a privação sofrida nos orfanatos durante a queda do ditador foi grande.

Privação na infância

A pesquisa sobre psicopatologia e privação precoce

A pesquisa consistiu em três grupos de crianças: dois grupos constituídos por crianças romenas que sofreram privações em orfanatos e que foram adotadas por famílias britânicas em momentos diferentes.

As crianças do primeiro grupo foram privadas por menos de seis meses, e as do segundo grupo foram privadas por mais de seis meses antes de serem adotadas. Havia um terceiro grupo de controle formado por crianças adotadas que não sofreram privação; neste caso, eram órfãos britânicos adotados também por famílias inglesas.

O estudo consistiu em avaliar as crianças dos três grupos com idades de seis, onze e quinze anos. Uma avaliação quando os adolescentes se tornaram jovens adultos também foi incluída posteriormente para medir o gerenciamento emocional em uma idade tão complicada.

Sintomas psicopatológicos medidos

As características psicopatológicas ou distúrbios que foram medidos no estudo foram:

  • Transtorno de interação social desinibida.
  • Transtorno do espectro autista (especificamente problemas de comunicação e obsessões).
  • Desatenção e hiperatividade.
  • Deficiência cognitiva.
  • Problemas emocionais e problemas de comportamento (medidos a partir da adolescência).

Resultados: a privação precoce é relevante?

Depois que essas crianças adotivas romenas cresceram e foram avaliadas em diferentes idades ou fases do estudo, observou-se como as três hipóteses iniciais encontraram suporte empírico:

  • O grupo controle e o grupo menos carente apresentaram níveis semelhantes de sintomas psicopatológicos em todas as idades.
  • O grupo com maior privação apresentou sintomas psicopatológicos apesar de ter recebido os cuidados necessários após a adoção.
  • Os problemas emocionais medidos na adolescência e na idade adulta tiveram um aumento maior no grupo com maior privação.

Além disso, observou-se um maior número de crianças com diversos sintomas psicopatológicos no grupo com maior privação. 34% das crianças desse grupo apresentavam pelo menos alguns sintomas em todas as idades, percentual que diminuiu quando se tornaram jovens adultos.

Nesse período, apenas 25% dos jovens do grupo mais carente apresentavam traços psicopatológicos. As psicopatologias que mais afetaram o grupo mais carente, em comparação com os outros dois grupos, foram sintomas relacionados ao transtorno do espectro autista, transtorno de interação social desinibida e desatenção e hiperatividade.

Outros fatos interessantes referem-se ao estilo de vida de jovens adultos nos três grupos. Foi observado que os jovens que mais sofreram com as privações na infância avançaram menos na educação e tiveram uma taxa de desemprego mais elevada. Além disso, os jovens do mesmo grupo fizeram maior uso dos serviços de saúde mental – psicólogos e psiquiatras – em todas as idades medidas. Por fim, também no grupo mais carente, havia três indivíduos com transtorno de personalidade limítrofe, dois com transtorno bipolar e outros dois com psicose.

Adolescente triste

Abordagens futuras derivadas desta pesquisa

Os resultados deste estudo mostraram a existência de uma relação entre a privação precoce nas fases iniciais de desenvolvimento e a psicopatologia, pelo menos considerando os transtornos aqui avaliados. O interessante, porém, não se limita a ter encontrado essa relação, mas também a definir o que pode ser feito em forma de intervenção.

Houve uma pequena porcentagem de crianças no grupo mais carente – especificamente 15 indivíduos – que não apresentou nenhum transtorno em nenhuma das idades avaliadas. Isso coloca os holofotes em estudos genéticos, epigenéticos e de resiliência que podem explicar por quê, embora tenham sofrido privações, elas não desenvolveram doenças como as outras. Saber disso pode elucidar quais estratégias implementar para que, apesar de um passado marcado pela fome, a criança possa se desenvolver de forma adequada.

Em relação ao comprometimento cognitivo avaliado, observou-se como este parecia se equilibrar com a idade nos três grupos, o que precipita o interesse em estudos sobre a neuroplasticidade das crianças e como o cérebro compensa as carências de seus donos.

Os resultados de problemas emocionais, que se tornaram muito perceptíveis na adolescência, também podem estar relacionados a uma vulnerabilidade latente relacionada ao estresse sofrido na infância.

Os campos de estudo decorrentes desta pesquisa parecem promissores. No entanto, uma medida que já pode ser implementada com base nos resultados apresentados anteriormente é proporcionar às crianças com privação precoce um atendimento psicológico contínuo e de qualidade uma vez que sejam adotadas, com atenção especial aos transtornos mais diagnosticados no grupo mais carente, focalizando a terapia nas dificuldades que podem estar relacionadas a eles.


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  • Sonuga, E., Kennedy, M., Kumsta R., Knights, N., Golm, D., Rutter, M., Maughan, B., Schlotz, W. y Kreppner, J. (2017). Child-to-adult neurodevelopmental and mental health trajectories after early life deprivation: the young adult follow-up of the longitudinal English and Romanian Adoptees study.

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